O descaso com a merenda escolar em Indaiatuba

Condições precárias de transporte da merenda escolar em Indaiatuba.

Não é preciso se estender muito para explicar a importância do tema Alimentação Escolar. Quem está antenado nas redes sociais (ou pelo menos em algumas das suas bolhas), deve ter visto a já bastante celebrada entrevista de Paulo Freire falando sobre fome e aprendizado. Os estudos sobre cognição e a neurociência não haviam avançado o suficiente na época, então Freire ainda não sabia que o buraco era bem mais embaixo.

Em artigo publicado em julho de 2022, no jornal Nexo, o pediatra José Luiz Egydio Setúbal, explica que “Crianças famintas de 0 a 3 anos não podem aprender tanto, tão rápido, ou também porque a desnutrição crônica prejudica seu desenvolvimento cognitivo durante este período crítico de rápido crescimento cerebral, realmente mudando a arquitetura neurológica fundamental do cérebro e do sistema nervoso central.”

Agora, é importante pontuar aqui que a palavra “fome” esconde um outro problema, também muito grave e pouco debatido: a subnutrição. Especialistas da Universidade de São Paulo definem subnutrição a partir de três pontos: quantidade insuficiente de alimentos; má qualidade dos alimentos, que carecem de proteínas, vitaminas e minerais; e a insalubridade da moradia, que aumenta a frequência de infecções.

Um problema além da fome

Dito isso, vamos olhar de perto para o que aconteceu (e ainda acontece) na nossa cidade. A Constituição Federal prevê que é dever do Estado prover alimentação de qualidade para as crianças e adolescentes de todas as escolas públicas, ficando a cargo de estados e municípios gerir as verbas destinadas pela União para tal fim. Logicamente, nossa cidade segue essa regra, porém, a partir de uma perspectiva privatista e liberal.

Segundo consta no site da Prefeitura de Indaiatuba, o município foi o primeiro da América Latina a privatizar o sistema de alimentação escolar (o que o poder público chama de “gestão terceirizada”), isso ainda em 1999. Segundo a própria matéria aí no link, a “parceria” entre Prefeitura e Nutriplus (já vamos falar mais sobre ela), vem desde então. Ou seja, de 1999 até meados de 2023, uma única empresa venceu todos os processos licitatórios que regulamentam a oferta de alimentação escolar. Quase 25 anos. Curiosamente, o mesmo período que nossa cidade foi dominada pelo reinaldismo.

Antes de fazer a ponte entre Nutriplus e subnutrição, gostaria de lembrar um pouco do histórico da empresa. Infelizmente, pouco sobrou da história da empresa contada por ela mesma, até porque, sua página no LinkedIn foi apagada, e seu site está fora do ar. Sobra apenas uma página desatualizada no Facebook, que não nos diz muita coisa, e alguma informação no site do Selo Social, indicando que a empresa existe desde 1982.

Mas apesar da falta de informações, a empresa deixou um vasto rastro de ilegalidades e polêmicas registradas pela imprensa. Alguns exemplos são: o atraso de mais de um ano no pagamento de merendeiras na cidade de Uberaba (MG) em 2021 (entre outros problemas na mesma cidade); a entrega de merenda com rótulos irregulares em Joinville (SC), também em 2021; outro caso de falta de pagamento no município de Resende (RJ), no mesmo ano; o mesmo problema, no mesmo ano, na nossa vizinha Piracicaba; ainda em Uberaba, a entrega de kits de alimentação de baixa qualidade, e denúncias sobre comida bichada, também em 2021.

Ainda sobre a atuação da Nutriplus em Piracicaba, as várias denúncias resultaram na abertura de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara da cidade, em 2021, onde foram apuradas denúncias de atraso de pagamento, suspensão de aulas por falta de alimentos, excesso de trabalho dos terceirizados, alimentos insuficientes para crianças com necessidades alimentares especiais, entre outras. Ainda em 2021, a Nutriplus enfrentou uma greve dos trabalhadores da empresa, em Piracicaba, exigindo o pagamento do salário atrasado. Um caso parecido também envolveu a empresa na nossa vizinha Itu (onde a Nutriplus foi substituída logo após, acontecendo o mesmo na cidade de Salto). Inclusive, em Itu, a prefeitura chegou a requerer os bens móveis da empresa para custear o serviço.

A empresa ainda coleciona processos, investigações e condenação em nível estadual. O Ministério Público do Estado de São Paulo investigou a empresa em 2021 por possíveis irregularidades em contratos emergenciais; em Santa Catarina, o ex-secretário de Educação, Eduardo Deschamps, foi condenado por danos causados a em contratos de alimentação escolar, sendo uma das empresas envolvidas no esquema, a Nutriplus; também em 2021, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) condenou sete empresas pela formação do “Cartel da Merenda” no Estado de São Paulo, onde as empresas combinavam os preços e propostas das licitações (o que a Lei proíbe), e claro, a Nutriplus foi uma delas. Importante: as investigações sobre o Cartel vieram a partir de documentos oficiais datados de 2008 a 2013.

O histórico é bem mais longo, mas enfim, prefiro não me estender mais nisso.

Desdobramentos após a primeira denúncia

Voltando para Indaiatuba, onde a Nutriplus reinou por quase 25 anos, quero lembrar da denúncia que circulou através do portal Indaiatubanos, em meados de maio de 2022. Eram fotos de boxes abertos, com comida estragada e bichada, registros feitos anonimamente, provavelmente pelas próprias merendeiras terceirizadas. Foi um choque, a população demonstrou verdadeira revolta nas redes sociais.

Logo após esse episódio, o Psol Indaiatuba se articulou para cobrar a prefeitura. Segundo a presidenta do partido, Érica Mano, a primeira ação foi cobrar a própria prefeitura via Ofício. Depois, o partido foi até a Câmara pedir apoio da vereança, mas foi surpreendido por uma Moção de Congratulação à Nutriplus, feita pelo vereador Hélio Ribeiro, e assinada por outros vereadores. O registro desse episódio grotesco e a reação dos militantes, você pode conferir no perfil do partido.

Diversas outras ações foram tomadas pelo Psol Indaiatuba desde então, inclusive uma denúncia ao FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), responsável pelo repasse de verbas federais ao município, e ao CAE (Conselho de Alimentação Escolar), que logo se uniu ao Psol na busca por explicações e pela resolução do problema.

Enquanto isso, outras denúncias surgiram de baixa qualidade dos alimentos, ou da falta de diversidade nutricional, condições precárias no transporte dos boxes, e afins. Apesar disso, e dos esforços de organizações e da própria população,  a prefeitura de Indaiatuba renovou o contrato emergencial da Nutriplus em julho de 2022, dando à empresa mais de R$18 milhões de reais, para operar por mais seis meses, descumprindo promessa anterior de abrir nova licitação.

Sai Nutriplus, entra Ômega: mais do mesmo

No mês de agosto do mesmo ano, após pressão popular nas redes sociais, a Prefeitura de Indaiatuba abriu uma nova licitação. Havia muita desconfiança de que a Nutriplus pudesse vencer (mais uma vez) o processo, mas isso não aconteceu. A lentidão no processo, e a permanência da Nutriplus, motivaram o Psol Indaiatuba a acionar o Ministério Público, em novembro do mesmo ano. A situação se estendeu até abril deste ano (2023), quando o contrato com a Nutriplus foi finalmente rompido, e outra empresa foi “escolhida” a partir de um contrato emergencial (e não através de uma licitação ainda em aberto), para preencher a vaga: a Ômega Alimentação.

Parece que a mobilização popular fez efeito, com a Nutriplus fora do jogo. Mas a contratação dessa empresa foi mais um golpe no povo indaiatubano. Explico: a Ômega Alimentação é uma empresa fundada em 1982 (mesmo ano da Nutriplus, lembra?), e tem sede na nossa vizinha Salto (mesma cidade onde consta uma das filiais da Nutriplus). Curiosamente, a empresa diz ser “Especializada em soluções de alimentação para empresas e hospitais”, mas não diz nada sobre alimentação escolar. Inclusive, essa empresa já foi alvo de denúncia aqui no município em 2019, um band-aid encontrado numa marmita fornecida pela Ômega à Guarda Municipal de Indaiatuba.

Uma pesquisa mais profunda tornou tudo mais cristalino: a Ômega faz parte de um conglomerado empresarial chamado Grupo JLJ, a quem pertence também, adivinha? A Nutriplus. Inclusive, no registro oficial de ambas as empresas, os sócios registrados são os mesmos para a Nutriplus e para a Ômega (Gerson Jonas Pittorri e Ignacio de Moraes Junior). Não à toa, ambas as empresas têm endereços vizinhos na cidade de Salto.

Ou seja, saiu a Nutriplus, mas seus sócios permanecem. Ainda em abril, com a Ômega já operando, novas denúncias de comida estragada, transporte inadequado de alimentos, e falta de material de trabalho, foram recebidas pelo Psol Indaiatuba e divulgadas pelo mesmo. No começo de agosto, novas denúncias sobre boxes chegando abertos nas escolas. A presidenta do Psol gravou um vídeo explicando as denúncias e apontando os erros da empresa. Em ambas as datas, ela confirma que o CAE foi acionado.

Resumo da ópera: o serviço segue terceirizado, na mão de uma empresa “irmã” da Nutriplus (essa, reconhecidamente inedônea), enquanto não há nenhuma garantia real de qualidade da oferta de merenda escolar.

Sobre boa parte dos casos que envolvem a Nutriplus nos anos de 2020 a 2022, a empresa alega que ficou sem receber verba pública dos municípios por conta da Pandemia de COVID-19, por isso, não estaria conseguindo cumprir seus deveres. Porém, não faltou verba para a empresa incluir informes publicitários em jornais locais (com aspecto de matéria jornalística de verdade). Infelizmente, só vi em jornais impressos, por isso não tenho link para essas “notícias”.

De qualquer modo, a imprensa indaiatubana não tem perfil investigativo, nem interesse político em investigar a Nutriplus, nem a Ômega, muito menos a Prefeitura. Nenhuma linha sequer sobre o caso saiu na imprensa local (sendo a única exceção, um texto na coluna do Ulysses Maia no Portal Z1). Apenas matérias de caráter positivo sobre a empresa foram veiculadas (a exemplo do Jornal Mais Expressão e do Jornal Exemplo).  Fica aqui o meu repúdio à essa imprensa fraca, vendida, chapa-branca.

Por um serviço verdadeiramente público

Por fim, quero trazer à reflexão aqui a importância de um serviço tão essencial para nossas crianças, ser um serviço verdadeiramente público, estatal.

Veja, empresas como Nutriplus e Ômega recebem verba pública para prestar serviços públicos. Porém, continuam sendo privadas, ou seja, só funcionam se tiverem LUCRO. Isso significa que parte da verba que poderia ser utilizada para contratar merendeiras concursadas e financiar alimentação saudável e diversificada, vira lucro para acionistas do Grupo JLJ (que, obviamente, estão pouco preocupados com nossas crianças…). Menor a qualidade do serviço, menor o custo de operação, maiores os lucros da Ômega/Grupo JLJ. Perceba que o dinheiro público (meu, seu e de toda a população) está sendo usado para encher os bolsos de um único grupo econômico, em detrimento da saúde e bem-estar de todas as crianças.

Por isso, faço coro com aqueles e aquelas que defendem o fim da privatização/precarização desse serviço essencial, a contratação imediata de merendeiras concursadas, o processamento e produção das refeições na própria escola, e a garantia de que os alimentos venham de produtores locais.

Vencer essa batalha seria também, de certa forma, enfraquecer o projeto reinaldista, e abrir caminho para uma cidade mais justa, fortalecendo uma cultura de valorização do serviço público, dos servidores e servidoras, e priorizando o que de fato deve ser priorizado: a saúde das nossas crianças, ao invés do lucro de empresas milionárias que prestam um serviço paupérrimo.

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Designer e Social Media. Militante do Psol Indaiatuba desde 2014. Atua também na Matute - Associação de Arte e Cultura de Indaiatuba. Antigo colunista dos blogs Palavras e Só, Cantos e Frestas, e Disco a Disco. Baixista e backing vocal na banda Jardim dos Magos. Crítico do reinaldismo desde que ele existe, até ele acabar.

2 thoughts on “O descaso com a merenda escolar em Indaiatuba

  1. Sensacional a sua investigação e perseguição por este tema tão delicado quando se trata das crianças e a alimentação.
    “A desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas.” KM

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